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Carnaval – O que a fantasia revela ou esconde?

Foi o poeta romântico alemão Heinrich Heine, em 1840, quem fez a primeira alusão à Religião como o ópio do povo. A partir daí, filósofos como Immanuel Kant, escritores como o Marquês de Sade e tantos críticos abalaram as estruturas sociais tomando por princípio que a Religião levava ao delírio.

carnaval abre alas

Mas, a frase que coloca a Religião como sendo o ópio do povo é encontrada em Karl Marx (2005), na obra Crítica do Direito da Filosofia de Hegel. Alguém, certa feita, ousou gritar em épocas carnavalescas que as festividades de Momo, também, inebriavam a consciência acerca de sua essência, onde neste momento, em êxtase, o indivíduo é levado a expor, o que em estado de vigília, vivendo sob a lei e o cotidiano, frequentemente não faria. Portanto, há verdade nesta comparação quando se observa os comportamentos, muitas vezes, instintivos e pulsionais em torno das festas de carnaval, ou seria melhor chamá-las em latim de carnevale?

Pois bem, do ponto de vista histórico, sob a orientação da Igreja Católica, o carnevale quer dizer “Adeus à carne!”. Isto nasceu no século XI, por imposição da Igreja com fins de preparar a população para a Quaresma, já que neste período os cristãos eram proibidos de se alimentarem de carne. E assim, os dias que antecediam a Quaresma eram a chance de todos se fartarem, de se permitirem a tudo, pois a ela traria abstinência sexual, oração e jejum.

Porém, como se diz popularmente, “o tiro foi dado no pé” da Igreja e o povo sentindo-se ameaçado com a proibição que se aproximava com a Quaresma, resolveu liberar as necessidades de várias ordens. Em Portugal, os cristãos tentando viver de imediato o que desejavam, posto que estavam por vir as festas cristãs e estas eram por demais rigorosas, iniciaram o carnaval com o nome de “Entrada”. “Também do latim, vem a palavra introitos, ou entrada, ou começo, utilizada para caracterizar o período de liberdade anterior à rigidez da Quaresma”. (MARTINS, 2013). 

Ainda sob o olhar retrospectivo histórico, as festividades carnavalescas têm também outras motivações. Tanto no Egito quanto na Grécia, e também em Roma, elas são encontradas. Todavia, como é possível observar, todas estavam intimamente ligadas à Religião ou ao simples culto de adoração. No Egito, há 4.000 a.C, já se rendia através de festividades, sem hora para acabar, o culto aos períodos da agricultura, às margens do Rio Nilo. As homenagens à deusa Ísis envolviam muitas festas, cerimônias, comemorando-se a fertilidade da terra. Já na Grécia, as celebrações ao deus Dionísio, também, envolviam o conteúdo relacionado à fertilidade com apresentação de peças teatrais, ao ar livre, para as multidões e que depois se deleitavam em comilanças, bebedeiras e orgias. Mas, se no Egito era Ísis, na Grécia era Dionísio, em Roma, donde deriva a profunda ligação com o carnaval da Pós-Moderindade, o culto era dirigido aos deuses Baco, Saturno e a Pã, e daí vieram os famosos bacanais, saturnais e lupercais.

As províncias romanas não escaparam à influência de tais bacanais sempre com muita promiscuidade e compulsão alimentar. Em pesquisas in loco, como por exemplo, em Cesareia Marítima, Israel, assim como em outros locais tomados pela cultura e estilo de vida romano, foram descobertos vomitórios e banheiros destinados aos convidados com a finalidade de quando eles estivessem cheios e empanturrados de tanta comida provocassem a liberação do alimento, e assim poderiam voltar às festas que duravam às vezes semanas. Nota-se que aqui tem registro dos primeiros casos dos bulímicos nas festas romanas, possivelmente, incluindo o rei Herodes, o Grande. (RANGEL, 2011).

Ainda dentro dos costumes romanos, a palavra carnaval pode ter tido outra origem, a latina carrum novalis. Ou seja, tratava-se de uma embarcação muito vista nas celebrações em Roma, semelhante aos carros alegóricos dos carnavais do Rio de Janeiro e de São Paulo. “Quando vieram os imperadores do século I d.C., os prazeres da carne passaram a preceder os do espírito. Em pouco tempo, as colinas da baía ecoavam com os sons de bêbados farreando, enquanto os farristas seguiam de uma enseada para outra, fartando-se de ostras frescas, em festas em que todos nadavam nus.” (PERROTTET, 2002).

Percebe-se na fluidez dessas festas marítimas a semelhança não apenas com os carros alegóricos dos carnavais, mas como descreve Perrottet (2002) vê-se nitidamente que tais locais serviam como atração turística cada vez maior. E não é assim com o carnaval brasileiro? Onde as mulheres são procuradas como objetos a serem usados, portadoras de prazeres inesgotáveis, em um país onde tudo pode, e vale salientar, não apenas no carnaval. A descrição feita por Perrottet, escritor dedicado à História, resgata a origem do conhecimento acerca de certos comportamentos apenas encontrados no carnaval e que datam da Roma Antiga, na cidade de Baiae, na costa italiana. “Mulheres solteiras são propriedade comum, homens idosos agem como jovens rapazes e muitos rapazes como moças.” (PERROTTET, 2002). O próprio imperador Nero, neste período, costumava se vestir de prostituta para buscar prazeres nos prostíbulos.

Esta pequena narrativa lembra ou não os carnavais do Brasil? Em Olinda, em Pernambuco, conhecida como a cidade que possui o maior carnaval do mundo, jovens são encurraladas nas ladeiras estreitas por rapazes musculosos, porém de cérebros miniaturizados que as obrigam a beijá-los, pois, caso contrário, não terão acesso a circular pelas ruas da cidade. E não se pode se esquecer dos rapazes que posam de machões o ano inteiro, e durante o carnaval se tornam “sensíveis”, ao ponto de saírem vestidos de mulheres, como ocorre no famoso bloco “As Virgens do Bairro Novo”.

Nada diferente de há 2.000 anos. Em Recife, onde se dizia resgatar os antigos carnavais, as ruas conhecidas, como a do Bom Jesus, entre outras, sempre é palco para sexo explícito entre jovens estimulados, em êxtase pulsional, provando o que Perrottet chamou de “vale-tudo” em Baiae. Estamos falando de Baiae ou do Brasil? Vale lembrar os bailes cariocas, em clubes, onde tudo, de fato, pode.

Do ponto de vista da Psicanálise, esse baile de máscaras tanto esconde quanto revela facetas de um mundo de anseios e conspirações. Ficaram famosos os grandes bailes de fantasias em Paris a partir do século XV e que chegaram ao Brasil no século XVII. Os de Veneza ainda possuíam uma conotação bem curiosa, mas não deixam de revelar o que em verdade a máscara e a fantasia escondem: enigmas, segredos e sombras da personalidade. As máscaras venezianas, que datam do século XI, serviam em época de carnaval, como disfarce para ter acesso a certos assuntos que no cotidiano não eram permitidos. Certos personagens da politica infiltravam seus olhos e ouvidos para saber o que os cidadãos falavam deles através de seus bajuladores mascarados. Porém, os cidadãos, também, passaram a usar as máscaras para fazerem críticas aos poderosos da cidade. E não é assim que ocorre também no Brasil? Carnevale.

Carnevale

A máscara revela por um lado o que à luz não pode vir ao conhecimento. E hoje estão todos fantasiados, sejam de Sininho, Peter Pan, Zorro, Cleópatra, Branca de Neve, uma infinita variedade de fantasias que revelam fetiches e muito apelo ao narcisismo, onde as brincadeiras demonstram adultos trajados de crianças. Não muito diferente de Baiae. O contato com o lúdico não trás, simplesmente, a criança adormecida no Homem, como defendem alguns, mas também, em especial, excita os comportamentos mais instintivos, e que para romperem com a ordem imposta pelo Superego que tenta regular a conduta humana sob o Princípio da Realidade, utilizam-se de drogas lícitas e ilícitas para liberar os conteúdos recalcados ou reprimidos em outra parte da personalidade, o Id. Este gigante adormecido é verdadeiramente quem somos. Ele deseja levar a vida pelo Princípio do Prazer, e é por isso que ele canta, “Oh!, Quarta-feira ingrata chega tão depressa, só para contrariar!” Ou seja, o Id não deseja lei, e se possível, o quanto mais rápido puder ele vai liberar, dar vasão às carências, aos comportamentos dissociativos e à violência, tudo pela busca do prazer!

O adeus à carne, o carnavale, nada mais é do que uma necessidade de autoafirmação para condução de uma fé religiosa. Aos poucos, tornou-se um ópio, uma fuga aos rigores a fim de deixar fluir de forma extremista o que a Religião não conseguiu conter, o admirável mundo humano, ainda que ignorado e desconhecido, e por isto mesmo tão vulnerável. Este Homem, que hoje festeja tanto na Colômbia quanto em Bruxelas, seja no Brasil ou no México, é o mesmo que, em todas às vezes que se encontra distante de sua essência, permite-se navegar nos carros alegóricos da imaturidade espiritual, fugindo aos compromissos de enfrentar a realidade além da máscara, e descobrir o que tanto a sua fantasia esconde. Só deixando que parta o “pierrô apaixonado” ou que canse de ser a colombina causadora de lágrimas, só assim o Homem poderá se autoafirmar, por ser autêntico em sua essência e responsável pelas suas escolhas.

BIBLIOGRAFIA:

MARTINS, J.P.S. Um Carnaval Encantado. Campinas: Editora Komedi, 2013.

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Bomtempo Editorial, (2005).

PERROTTET, T. Férias Pagãs. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

RANGEL, L. Por Que Jesus? A História de um Homem e seu Povo. Recife: Editora Bom Livro, 2011.

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