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OS EGÍPCIOS E O ALÉM-TÚMULO

Não é de hoje que as religiões professam a salvação, a condenação e o julgamento no mundo espiritual que aguarda os bons e maus, os justos e injustos.

Como disse o filósofo francês Bergson “as religiões, na tentativa de acabarem com o egoísmo na Terra, estimularam o egoísmo no céu”.

Isto se reflete no comportamento atual pelas neuroses obsessivas em torno da salvação e do que as pessoas são capazes de fazer por um lugarzinho no Paraíso.

No passado não foi muito diferente. No Oriente, entre cristãos primitivos dos séculos II e III, ficou conhecida a seita gnóstica que defendia a ideia de que a Terra havia sido criada por um ser divino, caído do Céu, ou seja, que fora rejeitado como divindade. Muitos gnósticos acreditavam que Jesus havia sido escolhido por Deus como instrumento da salvação das almas para levá-las de volta ao Céu.

É claro que ele não faria tudo isto sozinho, pois segundo esta crença gnóstica ele contou com a ajuda de uma entidade espiritual muito evoluída conhecida pelo nome de Cristo.

O objetivo, então, era oferecer ao homem conhecimento (gnosis) capaz de libertá-lo do mal, da ignorância que gera a dor e o erro. Daí a frase “Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará” (João, 8:32) é uma influência dos gnósticos nas palavras colocadas na boca de Jesus. Aliás, esse evangelho atribuído a João tem muitos pensamentos gnósticos e essênios. É nele que nascem as crenças de um Jesus tornado Deus ou seria Deus que se tornou Jesus? E da fusão entre Deus e Jesus. “Quem me vê, vê ao Pai”, (João, 14:9) ou ainda “Eu e o Pai somos um”, (João, 10:30). É claro que na interpretação dos judeus isso não teria soado bem… Um homem blasfemando desta forma, muito menos um judeu como Jesus falaria isto! A ideia do Consolador Prometido, por exemplo, é tipicamente essênia, pois se encontra nos textos dos Manuscritos do Mar Morto que datam dos séculos II a.C. ao II d.C. (RANGEL, 2013). 

Cristo, portanto, para os cristãos gnósticos, fora o responsável pelas curas e fenômenos realizados por Jesus. Sem Cristo ele não teria feito nada. Como se vê, portanto, muitos escritos dos gnósticos e suas crenças ainda impregnam o Cristianismo e os cristãos, pois não é difícil encontrar nos próprios evangelhos a presença desta gnosis, (conhecimento) que influenciou, inclusive, seus redatores mais tardios.

Recuando um pouco mais no tempo e ampliando a área de pesquisa, há registros no Egito de que a crença da salvação da alma remonta de uma forma ainda rudimentar, há 4500 a.C., no período do Antigo Império. Há estudiosos que defendem a ideia de que a primitiva crença acerca do Além para os egípcios já teria iniciado, até mesmo, antes da formação do Antigo Império. A realeza era a classe privilegiada na entrada do mundo dos mortos. Foi com o passar do tempo que os sacerdotes, nobres, engenheiros e escribas passaram a ter o direito de gozar da imortalidade junto do faraó. Isto ocorreu devido ao acesso do conhecimento sobre a religião funerária que passou a ser mais difundido.
Foi durante o Novo Império, por volta de 1290 a.C. até o domínio romano no século I a.C., quando as inscrições dos textos sagrados, contendo os encantamentos e as fórmulas que precisavam ser recitadas pelo morto, passaram a ser facilmente difundidas entre todo o povo egípcio, facilitando então a compreensão de como se conseguia um lugar no reino da imortalidade de Osíris.

Em pesquisas arqueológicas que realizamos no Vale das Rainhas, em Tebas, identificamos que há inúmeros relatos pertencentes ao período do Novo Império, como é o caso da câmara mortuária de Nefertari, da 19ª dinastia, onde nas paredes internas, entre tantas pinturas, encontra-se a imagem da deusa Maat, como representante da harmonia e do equilíbrio, bem como da Verdade.

No papiro (à direita) que faz parte de nosso acervo pessoal, encontram-se as origens das concepções cristãs acerca do Céu e do Inferno, bem como, ao prestar atenção nos detalhes, é possível perceber a forte semelhança entre os ensinos difundidos pelo Cristianismo e os da mitologia egípcia.

sala julgamento 2

Em primeiro plano, no alto do papiro, vê-se a alma sendo submetida a um julgamento diante de 42 juízes no além-túmulo. O morto repete os mandamentos da religião egípcia: “eu não matei, não fiz o mal, não roubei, fui justo…”. Porém, como apenas falar não resolvia o problema da salvação, ele teria que passar pela sala de Maat, a sala das duas verdades.

O seu coração é levado para ser pesado na balança, sendo colocado em um dos pratos. Por que o coração? Porque é o único órgão preservado no corpo da múmia, enquanto os outros órgãos eram colocados em vasos, chamados canopos. No outro prato é colocada uma pena da deusa Maat. Caso o seu coração pese mais do que a pena a terrível presença de Amut, o animal representante das forças do mundo inferior, irá comer o coração do morto e, assim, a alma irá para o tormento eterno. (RANGEL, 2011)
Enquanto seu coração é pesado, Anúbis, o deus do embalsamento, confere o fiel da balança deixando a Tot, o deus com cabeça de Íbis, a função de anotar as ações do morto, verificando se o que ele falou aos 42 juízes corresponde ao peso do seu coração. Caso ele seja mais leve do que a pena surgirá então Hórus, o messias dos egípcios, que levará o morto diante do deus Osíris, que está assistido por suas duas irmãs, Ísis e Néftis. Osíris, então, indicará ao morto o lugar na feliz eternidade.

Após esta explicação acerca da passagem da alma para o mundo dos mortos, resta uma breve análise sobre os ensinos do Cristianismo, atribuídos a Jesus, e a mitologia egípcia. Em primeiro lugar a incrível semelhança entre os mandamentos que Deus teria dado a Moisés e os proferidos pela alma diante dos juízes. Ainda dentro desta perspectiva, vê-se a repetição de um ensino de Jesus: “A boca fala do que o coração está cheio” (Mateus 12:34). É preciso entender que muitas dessas máximas morais e aforismos são de natureza universal, pois os povos trocavam experiências, em especial no Oriente Médio e no Norte da África, o que termina por facilitar a incorporação de conceitos e crenças de diversas culturas. Depois, no mesmo papiro, temos a presença do representante das regiões de sofrimento, nada muito diferente do que foi passado no Cristianismo, a disputa pelas almas entre as forças do bem e do mal.

Aprofundando um pouco mais a análise, é curioso observar que Hórus, o messias, aparece como a salvação para o morto levando-o diante de Osíris que tal qual o Deus dos cristãos está sentado em um trono nos céus. É possível, também, notar na postura de Hórus alguma semelhança com a frase “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida, e ninguém irá ao Pai senão por mim”, mais uma vez em João 14:6. A proposta desta frase que foi atribuída a Jesus revela a dominação política, religiosa e ideológica do Cristianismo, o que implica dizer que “quem não se tornar cristão, não vai para o céu”. Ou seja, muçulmanos, budistas, hindus, judeus, pagãos de várias ordens, e atualmente os espíritas não escapam dessa lista, não irão para o céu caso não abandonem suas religiões e doutrinas para aceitarem Jesus Cristo como único caminho para a salvação.

Também nos ensinos de Hórus na mitologia do Antigo Egito ele se diz a “Luz do Mundo”. Quem mais disse isto? Alguém lembra? De novo, no suspeito evangelho atribuído a João, em 8:12.

Existem outras comparações e aprofundamentos sobre a temática que é por demais extensa e rica, tratando em especial da ideia do Messias entre os judeus essênios (KNOHL, 2001).

Entretanto o tema merece uma última análise que está relacionada ao nome da sala das duas verdades: Maat. Este nome faz lembrar não apenas o nome do evangelista Mateus, mas da mesma forma que a sala é usada para julgamentos, o Evangelho de Mateus trata basicamente do Juízo Final, ou seja, julgamento após a morte, tema comumente repetido pelos cristãos. Tem ou não semelhança com Maat? Além do mais, não há fundamento para aceitar a ideia de que Levi passou a ser chamado de Mateus e já se sabe, entre os exegetas e teólogos, que o Mateus que escreveu O Evangelho Segundo Mateus não é o Mateus que Jesus resolveu, sem qualquer explicação, mudar o nome do rapaz de Levi para Mateus. Indo mais direto ao assunto, nenhum dos que assinam os evangelhos conheceu de fato Jesus! E o mais curioso é que alguém escreve um livro e põe o título O Evangelho Segundo Mateus… Por que não pôs O Meu Evangelho? Ou seja, é Mateus escrevendo um evangelho e assinando “segundo Mateus”. Isto quer dizer, logo de início, que não foi ele o autor. (RANGEL, 2009) 

As descobertas da História, da Arqueologia, juntamente com as críticas textuais em torno dos evangelhos, mostram que o Cristianismo não fugiu à influência das religiões pagãs e que o Cristo a quem os cristãos seguem é mais o Cristo dos pagãos do que o Jesus Histórico.

Com o resgate do Jesus Histórico há uma maior possibilidade de se aproximar da essência de sua mensagem e o Cristo da Fé será entendido apenas como um representante mítico, moldado segundo os interesses de quem o criou, sem deixar de conter, é óbvio, a verdade histórica que todos os mitos possuem.

Bibliografia:

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

KNOHL, I. O Messias Antes de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

RANGEL, L. Arqueologia dos Evangelhos – Uma Releitura Histórica do Pensamento de Jesus. Recife: Editora Bom Livro, 2009.

_____, L. Por que Jesus? Para Compreender a História de um Homem e seu Povo. Recife: Editora Bom Livro, 2011.

_____, L. Jesus Além da Crença. Recife: Editora Bom Livro, 2013.

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