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Um corpo para Cristo

Em 1243, teve origem em Liège, Bélgica, a celebração do Corpus Christi. Graças a uma freira de nome Juliana Cornion que diz ter visto Cristo solicitando a ela que informasse a todos o desejo dele: que as pessoas não esquecessem o significado do motivo de sua morte, e assim passassem a colocar a Eucaristia em destaque no cenário cristão.

Aliás, não são todos os cristãos que comemoram o Corpus Christi, mas mesmo vivendo em um país democrático, livre e laico estes são obrigados a se submeterem a um feriado tipicamente medieval que reflete ainda o casamento da Igreja com o Estado.

A celebração do Corpus Christi faz inevitavelmente uma releitura da antiga caminhada do povo hebreu no deserto e durante tal trajeto, Yahweh ofertou o maná ao povo faminto. 

No Cristianismo, ela surge como um ataque ao povo hebreu por parte dos cristãos que desejam mostrar a superioridade de Cristo em relação ao líder dos judeus, Moisés.

Em discussão com os seus ouvintes, lê-se no evangelho atribuído a João, que alguém teria pedido uma prova de que Jesus era confiável como um novo líder, como messias.

Caso operasse um sinal dos céus, como ocorreu com Moisés, quem sabe creriam nele. A resposta aos questionadores, que foi colocada em sua boca, surge então, com a finalidade de passar esta informação, Cristo é o novo escolhido, Moisés está superado.

E assim, Ele teria dito que “era o pão da vida”.

Todavia, desde o advento da Eucaristia, os cristãos não precisam mais deste alimento de Deus, “o maná que venha dos céus”, pois o próprio Deus teria oferecido o corpo de Cristo, segundo o Catolicismo, em duas hóstias: uma que é consumida pelos cristãos e a outra que fica amostra para ser adorada.

Sem dúvidas, antes de qualquer análise acerca desta passagem, cabe relembrar as antigas e atuais animosidades entre judeus e cristãos. Nisto, observa-se mais um jogo de dados para decidir quem é o povo eleito de Deus.

Os judeus tiveram Moisés; os cristãos, Jesus. Os judeus tiveram o maná; os cristãos, o corpo de Cristo. Os judeus assassinaram o Messias; os cristãos, O ressuscitaram. Os judeus têm a Torá; os cristãos, a Bíblia. Os judeus perseguiram os cristãos; depois os cristãos, fizeram o mesmo com os judeus; os judeus tiveram o grande Templo e as sinagogas; os cristãos, o Vaticano e as paróquias.

Enfim, o Cristianismo não escapou da influência do judaísmo. Mesmo que os cristãos tenham tentado se afastar dos judeus, o mecanismo de repetição e de apropriação para a formação da identidade cristã foi inevitável.

Na passagem que envolve Jesus e os discípulos durante a última ceia, além de se observar a partilha do pão, também há a do vinho.

Segundo os evangelistas, ele teria procedido dessa forma, dizendo aos seus que aquilo era o seu corpo e o seu sangue. Mas, este momento revela muito mais… apresenta sob um outro ponto de vista, várias facetas de uma disputa política, de conflitos religiosos e territoriais acirrados.

Lê-se em Mateus, 26, v.28: “Pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança que é derramado por muitos para a remissão dos pecados.”

Agora, lê-se em Marcos, 14, v24: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos.”

Curiosamente, a mesma passagem, já não é mais a mesma em Lucas, 22, v20: “Esta é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós.”

Em primeiro lugar, a palavra Aliança que aparece nos três textos possui uma característica política e religiosa, prova de um arranjo feito posteriormente no texto.

A primeira e única Aliança foi feita por Moisés e Yahweh. Então, como é que agora surge uma “Nova Aliança”, conforme diz o evangelho atribuído a Lucas?

A expressão “nova” já é um recado dos cristãos aos judeus, mostrando que a partir daquele instante o que vale é Jesus e não mais Moisés. Um outro ponto a considerar é a culpa do “sangue derramado”, pois em Lucas, Jesus a coloca em seus ouvintes, “por vós”, os judeus. Estes são, segundo Lucas, os responsáveis pela sua morte.

Mas, em Mateus e Marcos o sujeito é desconhecido. Há quem ainda possa dizer que a expressão “por vós”, signifique “em favor de”, mas o julgamento de Jesus diante de Pilatos conforme narrado por Mateus (27,25), mais uma vez aparece a culpa da morte do galileu sendo colocada sobre os judeus, quando estes pedem que seu sangue seja derramado sobre eles, judeus. Se os judeus levaram a culpa da sua morte, os cristãos levam a culpa do objetivo de sua morte, “a remissão dos pecados”, ou seja, ele morreu para levar os pecados da Humanidade.

Então, com esta proposta, surge uma primeira reflexão. Diante de todo este cenário de desordem social e moral que se assiste, diariamente, ele não teria falido em sua missão? A de levar os pecados da Humanidade? Sim… porque são muitos os pecadores na sociedade. Só no Brasil então, nem se conta…

E quanto mais culpado o Homem, mais fragilizado fica. Consequentemente, mais religiões se multiplicam com suas promessas de salvação. E sem esquecer dos missionários de Deus… muitos a prometer a libertação de toda e qualquer dor, através da fé negociada, inclusive, com cartão de crédito.

Quanto maior o número dos dependentes envoltos nesta histeria coletiva promovida pelas inúmeras “tecno-religiões” (grifo nosso), maior também é o número de pseudo-líderes em seus Templos dourados a oferecer um pedacinho do paraíso, sob a ameaça do terrível dia do “Juízo Final “.

Do outro lado está a estrutura cristã secular que oferece um pedaço de trigo como símbolo do corpo de Cristo que fora elevado aos céus.

Todavia, um dia desses, se por acaso, o verdadeiro corpo do Homem de Nazaré for encontrado entre os mortos e não nos céus, ressuscitado, o que será da crença da ressurreição? O que ocorrerá com a fé dos cristãos? Suportará? Ou continuará cega, independente das descobertas científicas, como já se faz perceber em outros aspectos? Porém, e se esta fé não se sustentar mais? Talvez ocorra em grande escala o que já acontece com muitos, a descoberta de que acreditaram em arranjos realizados ao longo do tempo com outros objetivos, em especial, o da manipulação das massas.

O que irá acontecer com o Cristianismo, cuja base é a ressurreição? Socialmente falando, o que virá após isto? Um caos? O aumento no número de arreligiosos? Quem sabe também, de ateus? O retorno das ideias materialistas?

Mas, não há cristãos materialistas e egoístas? Por outro lado, não há aqueles, que mesmo ateus, possuem mais ética do que muitos cristãos que ocupam até cargos públicos? Por acaso, não existem arreligiosos com mais fé operante em transformações sociais, do que muitos cristãos que esperam “transportar as montanhas” sem qualquer esforço? Não sabem viver em paz com o próximo aqueles que estão ausentes das Igrejas? Porventura, por serem “hereges” não mantém suas relações com a sociedade de forma transparente e ética? Por acaso, deixam de ser menos fraternos e preocupados com o bem-estar social aqueles que não comungam da crença da grande maioria?

Interessante observar que se em tudo na Natureza passa por transformações e muitas vezes violentas, haveria então de se perguntar, por que o Homem escaparia dessas transformações em sua crença, em seus paradigmas intelectivos e afetivos?

O desequilíbrio de um organismo, de um sistema, propicia uma busca imediata por uma reorganização, uma regulação de seu funcionamento, e consequentemente, por novas descobertas e formas diferentes de se ver, e também, a vida.

Mas, até lá… que continuem as buscas e as pesquisas pelo Jesus Histórico, ainda que sem corpo. Àqueles que estão satisfeitos com o corpo do Cristo, já receberam a sua hóstia. Mas aos que o rejeitaram, porque não desejam mais viver como reféns da culpa e do medo, surge uma nova proposta, a de descobrir o sentido de sua presença ainda que tão incompreendida e ignorada…

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