CRISTO QUER MORRER, JESUS NÃO!
Para esta análise não me utilizarei senão como recursos basilares de investigação das contraditórias passagens dos Evangelhos. De forma detalhada, a fim de facilitar a compreensão de um assunto por demais complexo e que ainda trata-se de um tabu, irei apresentar a controvertida hora do Gethsemani ou Getsêmani, envolta em muitos mistérios, sentimentos de angústia, dor moral e solidão que Jesus teria enfrentado antes mesmo de seu encontro com os sacerdotes, Anás e Caifás.
Getsêmani quer dizer “prensa de azeite”. A Igreja Católica ainda insiste em dizer que o pedaço de reserva de oliveiras sob seus domínios em Jerusalém é o local original em que Jesus experimentou a angústia da traição e em especial a da morte. De fato o local possui árvores envelhecidas pelo tempo e segundo alguns defensores da passagem bíblica ele seria verdadeiro.
Do ponto de vista arqueológico, nele foi encontrado uma prensa para fabricação de azeite, e as pesquisas indicam, também, ter sido um terreno de propriedade particular. O que aumentam as chances de que se o lugar é verdadeiro deve ter sido usado por Jesus e seus amigos por várias vezes quando visitaram a velha Cidade dos Profetas. Talvez tenha pertencido a alguém familiar a Jesus ou a um de seus adeptos, e como era de costume na ausência de uma residência para hospedagem dormir ao relento e se cobrir com a própria vestimenta.
As passagens no Getsêmani são por demais confusas e contraditórias e para analisá-las é indispensável abrir a mente e aguçar a percepção para a compreensão dos fatos que ali são narrados.
O primeiro questionamento é como os guardas dos sacerdotes teriam visto, naquela escuridão, Judas beijar o rosto de Jesus? Bem, alguém pode dizer que era uma noite de luar e o local não estava tão escuro, ou que aqueles que vieram prendê-lo traziam archotes. Então está bem. Mas logo surge outra dúvida. Se ele sabia que seria traído e que Judas já não estava mais com ele, por que se deixar prender? Provavelmente os cristãos possuem já outra resposta: a de que ele sabia que a sua morte tinha que ser daquele jeito.
No Evangelho Apócrifo de Judas a história tem outra trajetória. Judas recebe a revelação do plano de Jesus e este lhe pede que o entregue para que se cumprisse nele a profecia do Messias libertador de Israel. O dono da bolsa do grupo de Jesus, que passou à posteridade como um homem amaldiçoado, é praticamente forçado por Jesus a entregá-lo às autoridades. Depois, conforme narra o Evangelho Segundo Judas, uma obra gnóstica, Judas não o abandonou um instante sequer, ao lado de outras mulheres, enquanto seus outros amigos fugiram.
Na narrativa apócrifa sua dúvida constante é: qual a finalidade dele morrer e ressuscitar após três dias? Já sua certeza é: Jesus não é o Messias que o povo quer. Ainda, conforme este texto, Judas passou o resto de sua existência entre os essênios e os ajudou a escrever os textos que deixaram registrada a história do povo judeu ante às ameaças de Roma em destruir Jerusalém.
Os fatos mais conhecidos dos cristãos acerca da morte de Jesus se encontram nos textos canônicos. Assim sendo, vamos aos fatos. Em Marcos ele não quer morrer, como se lê em 14: 35-36:
“E, indo um pouco adiante, caiu por terra, e orava para que, se possível, passasse dele essa hora. E dizia: “Abba” (Pai)! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém não o que eu quero, mas o que tu queres”.
Antes de comparar com a passagem em Lucas, percebe-se nitidamente que quem escreveu esse evangelho não pode ter sido um judeu. A pessoa que o redigiu teve nítidas intenções de traduzir até a palavra em aramaico “Abba” para pessoas que não conheciam o dialeto semita. Os amigos de Jesus não estavam preocupados em difundir suas mensagens para além do mundo judaico. Eles e Jesus tinham uma religião, o Judaísmo, portanto não havia interesses de fundar uma nova organização e ainda especificar em detalhes até o drama de seu amigo.
A mesma passagem em Lucas é gritante a contradição, pois se em Marcos ele não quer beber o cálice que seu Abba o obriga, em Lucas ele se rende a vontade tirânica e sádica de Deus. Ele tem que morrer para a expiação dos pecados da Humanidade! E além do mais ele aceita pacificamente a morte, profundamente depressivo, transpira até sangue e ainda recebe o consolo de um anjo, como se lê em 22: 41-44:
“E afastou-se deles mais ou menos a um tiro de pedra, e, dobrando os joelhos, orava: ‘Pai, se queres, afasta de mim este cálice! Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!’. Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava. E, cheio de angústia, orava com mais insistência ainda, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caíam por terra.”
Não se pode furtar a uma breve, porém, relevante informação acerca dos versículos 43 e 44 no que diz respeito à presença do anjo e das gotas de sangue. Em manuscritos que tive a oportunidade de consultar, como o Sinaiticus e o Vaticanus em especial, os melhores textos que remetem ao século V d.C., não há qualquer referência neles sobre esta passagem. Do ponto de vista histórico, foi no Concílio de Trento, em 05 de Abril de 1546 que os líderes da Igreja resolveram deixá-los, ainda que sabendo da falta de originalidade dos mesmos, alegando que eles deixavam aquela passagem mais poética e bela.
Aliás, o autor do Evangelho de Lucas adora anjo…
Em Lucas é flagrante que ele quer morrer. Este Jesus não é o Jesus de Marcos. Em Marcos ele não é um depressivo suicida, pois ele ama a vida. Em Lucas ele é o Cristo que se submete à morte, e mesmo angustiado, sentimento comum nas duas narrativas, ele deseja de forma subserviente à vontade de seu Pai que almeja a sua morte. (RANGEL 2013).
Em Lucas ele não se joga angustiado ao chão, como narra Marcos, mas se ajoelha. A distância em Lucas é precisa, “a um tiro de pedra”, mais ou menos entre 20 e 30 metros, ou seja, o escritor de Lucas ainda conseguiu medir a distância que ele estava dos amigos adormecidos?
Outra passagem presente nos textos deixa margem para mais dúvidas. Uma delas é clara: quem testemunhou tudo aquilo, sua angústia, a chegada do anjo e quem ouviu sua fala se todos estavam dormindo? Jesus chegou até mesmo a adverti-los:
“Erguendo-se após a oração, veio para junto dos discípulos e encontrou-os adormecidos de tristeza. E disse-lhes: ‘Por que estais dormindo? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação’” (Lucas, 22: 45-46).
O mesmo ocorre em Marcos 22: 33-42, pois ele leva consigo Pedro, João e Tiago e todos dormem ao ponto de Jesus acordá-los por duas vezes e na terceira ele diz:
“Dormi agora e repousai. Basta! A hora chegou! Eis que o Filho do Homem é entregue às mãos dos pecadores. Levantai-vos! Vamos! Eis que o meu traidor aproxima-se.”
Percebe-se aqui um Jesus bem enérgico!
Surge agora uma questão não menos importante: foi seu Pai quem desejou a sua morte? Ou foram os filhos do Pai, os cristãos, que a desejaram para Jesus? E assim repetem tal desejo, compulsivamente, todos os anos.
Mas isso, já é outra história…
FOTO EM P&B: LISZT RANGEL
BIBLIOGRAFIA:
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
O Evangelho de Judas. São Paulo: Prestígio, 2006.
RANGEL, L. Arqueologia dos Evangelhos – Uma releitura histórica do pensamento de Jesus. Recife: Editora Serapeum, 2013.