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O perverso que habita em nós

A pessoa atrás do biombo não existia. Ela era a soma de todas aquelas expectativas, desejos e, acima de tudo, tornara-se um objeto do lado mais sombrio daqueles que à espera de sua aparição, já experimentavam o êxtase.

Pouco importava se sofria, se gostava ou não. Deveria ser apenas o canal por onde todas as perversões fluiriam. O apresentador do programa televisivo passara toda a semana anunciando que naquele dia e hora estaria presente o símbolo do horror o filho da deformidade, o reflexo da bestialidade.

Além dos espectadores do show televisivo que se aglomeravam no pequeno palco do auditório, as câmeras dispostas se tornaram os olhos da audiência atenta, a roer as unhas, disposta nos lares a aguardar o início do programa sensacionalista.

A plateia presente gritava e os de casa não permitiam qualquer barulho que pudesse interromper aquele prazer que antecedia a visão do deformado. Àquela altura, depois de muito esticar em intervalos o momento esperado, o apresentador dirigiu a palavra à pessoa por trás do biombo.

Todas as semanas havia uma presença estranha naquele programa e a audiência estava ali, sempre cativa. O público escolhera aquele canal de forma consciente e satisfatória. Alguns telespectadores, dissimuladamente, expressavam palavras de piedade ao ouvir a trágica história narrada pela sombra da pessoa convidada.

Geralmente, as histórias ali contadas, giravam em torno de uma doença congênita. A pessoa era escolhida não apenas para chocar, mas para atrair tantas outras, elevar a audiência, e em troca de alguma quantia financeira, se permitia a algo mais profundo, ser o objeto do prazer das perversões alheias.

Antes de sua aparição, quando deveria sair detrás do biombo, muitos já haviam entrado em pleno gozo após sentirem uma tensão que percorria todo o corpo.

Em alguns, o fenômeno se dava pela audição, uma vez que a voz carregada de aflição criava e recriava novas e terríveis paisagens na imaginação dos que assistiam.

Em outros, o ápice do prazer se daria na captação da imagem, e graças à musculatura do globo ocular, as tensões aumentavam para que no contato com o “monstro” revelado, surgisse finalmente a liberação do alívio em forma de gozo, um gozo perverso, tão esperado.

Como escreve Nasio (1993), “Observemos que a zona erógena relacionada com o olhar são as pálpebras…”

Essa breve descrição de um programa da TV brasileira que ocorreu nos anos oitenta e noventa revela algo bem mais terrível do que a presença de uma pessoa doente ou deformada diante das câmeras. O ponto crucial desta análise é o que talvez nos neguemos aceitar. Refiro-me à imensa satisfação de muitos indivíduos em sentir, manter, externar, legalizar e normalizar a perversidade.

O psicanalista Nasio ainda esclarece que a fantasia é composta por quatro elementos que seriam, um sujeito, um objeto, um significante e as imagens.

O sujeito é aquele que escolhe o objeto, que por sua vez, pode ser algo ou alguém. Quanto ao significante é o material recalcado que busca gozo em um cenário repleto de imagens que se tornam essenciais na obtenção do êxtase do prazer a ser vivenciado. Esses elementos reunidos constituem um roteiro que pode ser traduzido como perverso.

A fantasia serve para tornar aquele que observa em observador, pois ao tomar para si o gozo, ele funde-se com o objeto olhado na tentativa de preencher o lugar da falta que carrega em si.

O observador dos espetáculos de horror, e não me refiro apenas ao público televisivo, é o que podemos chamar de voyeur. Assim vale, também, para o voyeur do reality show e para aquele que assiste às excentricidades místicas e religiosas; estes não são diferentes dos que sentem prazer com o ato de observar a nudez ou as práticas sexuais, muito menos, se distanciam dos que consomem as tragédias do cotidiano em notícias sangrentas.

O prazer entra pelo olho, mas é o corpo que sente o gozo até nas tensões musculares diante da cena observada.

O que torna alguém um perverso é o fato do gozo ser encarnado e não saciado. Isso também se dá, quando ele se sente um observador privilegiado, como se a cena o convidasse para participar, e assim, ele assume e vive seu narcisismo patológico.

No caso dos neuróticos, segundo Lacan (1998), estes não conseguem acessar a realidade e se comprazem através de sonhos por não terem a coragem de por em prática suas fantasias, posto que é através destes que aliviam suas tensões, enquanto durante a vigília recalcam seus desejos.

Mesmo após tantas atrocidades ocorridas e testemunhadas ao longo dos séculos por cada ser humano, o prazer também ainda é o mesmo. Não há qualquer hipótese para afirmarmos que tais pessoas não sabem de suas escolhas. As mesmas podem ignorar que são perversas, mas isso não as inocenta.

A pessoa por trás do biombo ainda está em cada ser humano que carrega um ou mais estigmas, afinal, os perversos precisam destes indivíduos para se sentirem especiais e poderosos.

Estes perversos não estão apenas na liderança da mídia, mas também em família, na intimidade das religiões e doutrinas, assim como, no jogo da política. Ou seja, onde quer que exista alguém profundamente sofrido e que sirva como objeto para manutenção de todos os tipos de ganhos, ali poderá haver um ou mais perversos. E o pior de tudo, geralmente, este ato desumano encontra-se legalizado e normalizado pela sociedade, também, adoecida.
LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1995.
NADIO, J-D. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1993.

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