Jesus se sentiu abandonado por Deus?
Um Jesus, visivelmente, abandonado, crucificado, e entre suas últimas palavras estão, “Elohaï, Elohaï, lama sabaqtani!” A tradução feita por André Chouraqui¹, especialista em estudos rabínicos, apresenta uma expressão saída da boca de Jesus, “Meu Elohîms, meu Elohîms, por que me abandonaste?”
Originalmente, registrada no evangelho atribuído a Marcos, a frase de Jesus para muitos leitores parece refletir um sentimento de revolta e abandono, o que para os cristãos tal reação seria inaceitável vinda do Salvador da Humanidade.
Isto se explica, porque na concepção do Cristianismo, o Cristo é o único Filho de Deus e que chega até mesmo para algumas variantes da religião cristã a se confundir com o próprio Deus; para outros, ele seria um ser superior que sabia tudo o que iria lhe ocorrer em vida.
Desta forma, qualquer sentimento ou atitude demasiadamente humana, tratar-se-ia de uma grave incongruência, não apenas no tocante a sua mensagem, mas também, para um ser tão especial em sua divindade.
Sem o entendimento das tradições rabínicas sobre a Antiga Fé de Israel, e também, sem a aceitação do fato de que ocorreram inúmeras adulterações, enxertos e manipulações nas Escrituras, não será possível uma aproximação histórica da narrativa, nem com a autenticidade dos acontecimentos e ensinos atribuídos ao Homem Jesus.
A crença presente na mentalidade judaica daquele tempo, ensinava que aquele que era alvo do “abandono de Deus” estaria sendo castigado pelo não cumprimento dos seus mandamentos. Isto se vê nos casos dos ímpios que pela vontade de Yaweh (Deut. 28, 19-58; Lev. 20, 8-37) seriam retirados do meio do “povo eleito”, e ainda o Senhor lhes viraria a própria face, relegando-os ao destino da morte².
A descrição histórica encontrada na Lei de Moisés acabou por servir ao Michel Foucalt como subsídio para a compreensão das origens da loucura, incluindo as inúmeras outras desgraças que poderiam acometer todo homem ou mulher que não obedecesse aos estatutos de Yaweh³.
Dentro do contexto da crença do abandono de Deus, está as consequências dos delitos cometidos, em desobediência à Lei, que incluía as penas capitais exercidas na Antiga Fé de Israel; uma delas era o apedrejamento. Além disso, registra-se nos costumes judaicos, assim como, nos romanos, a possibilidade do corpo do sentenciado à morte ser deixado exposto, suspenso do chão, com fins de que servisse de exemplo para os que ousassem pensar em cometer o mesmo crime.
No que diz respeito, especificamente, às tradições judaicas, o morto por apedrejamento poderia ainda ser erguido por uma corda ao pescoço, todavia, seu corpo deveria ser sepultado antes do por do sol.
Os condenados à morte deveriam receber a sentença fora de Jerusalém, para assim, evitarem macular o solo da Cidade Santa. No caso de Jesus, não foi diferente. Ou seja, Jesus sofre o efeito da Lei e sua morte, suspenso do chão, já seria um sinal para os de sua época, do abandono imposto por Yaweh.
O que chama a atenção nesta passagem, em que se observa o sentimento de abandono experimentado pelo Filho de Deus, é que ela seria o reflexo do pensamento de Jesus na hora da sua morte? Ou se trataria da projeção de uma crença de quem a escreveu, ou quiçá, da comunidade primitiva que usava tais textos e que depois seriam atribuídos à autoria de Marcos?
Com fins de aprofundar a busca pela historicidade de Jesus de Nazaré, e sem quaisquer pretensões de esgotar o assunto, pode-se recorrer às antigas escrituras judaicas, aonde esta mesma sentença que expressa abandono aparece em Salmos,22:1, “Meu Deus meu Deus, por que me abandonaste, descuidando de me salvar, apesar das palavras do meu rugir?”⁴
Teria o autor ou as mãos que adulteraram os textos dos evangelhos, nesse caso, introduzido esta sentença posteriormente a sua escrita mais primitiva? Percebe-se com essa possibilidade que a redação do texto de Marcos também acabou por afetar um dos textos apócrifos, aonde aparece a crença gnóstica, exatamente no Evangelho atribuído a Felipe, “Meu Deus, meu Deus, por que, ó Senhor, me abandonaste? Foi, pois, na cruz que ele disse essas palavras, porque foi ali que ele foi dividido.”⁵
O Gnosticismo, cuja expressão grega gnose, significa “conhecimento”, e toda a filosofia dos cristãos gnósticos dos séculos II e III E.C. pressupõe uma Revelação do Conhecimento, vinda através de uma entidade denominada Cristo que assistia Jesus de Nazaré para realizar os fenômenos.
A crença na divisão que ocorrera entre a tal entidade Cristo e Jesus, para os gnósticos, se deu na hora da sua morte. A expressão de abandono pronunciada por Jesus, demonstra, segundo esta doutrina, a sua indignação após a entidade lhe ter usado para promover sinais, milagres, curas, e além de tudo, escandalizado a sociedade de seu tempo com os ensinos, fazendo com que o Galileu ficasse exposto às perseguições e à morte.
Neste sentido é que se entende o texto de Felipe, “Foi, pois, na cruz que ele disse essas palavras, porque foi ali que ele foi dividido”, ou seja, a entidade Cristo o teria deixado para morrer sozinho; todavia, conforme ensina a doutrina gnóstica, por ter sido um leal e obediente revelador da “vontade de seu Pai”, o Cristo o ressuscitou, dando-lhe ainda o poder de oferecer a Vida Eterna.
A crença de que Jesus morreu abandonado também se encontra em um antigo texto que tive a oportunidade de consultar em Roma. Em uma parte da carta atribuída à autoria de Paulo e que fora direcionada aos hebreus, lê-se no documento em antigo grego, uma informação bem gnóstica, a de que “Jesus morreu sem Deus”, enquanto que as cópias posteriores que deram origem às latinas, aparece assim, “É que pela graça de Deus, provou a morte por todos os homens.” (Heb, 2,9)
O que se percebe, claramente, é que os textos se influenciaram e nisto está um grande perigo a qualquer tipo de originalidade na mensagem e nos fatos da vida de Jesus. Cada grupo étnico espalhado pelo Mediterrâneo, em torno do Mar Egeu ou na África colaborou para a construção de seu próprio Cristo.
Uma outra relevância sobre as diversas cristologias que precisamos considerar em pesquisas, é a que reflete o grupo de cristãos que usava os evangelhos apócrifos, como o já citado de Felipe, e sem esquecer o de Pedro⁶, onde a mesma suposta passagem do abandono reaparece assim, “Meu poder, meu poder, abandonaste-me!”.
O que fica cada vez mais notória é a influência de crenças judaicas em mais de uma passagem nas Escrituras. Se considerarmos, como demonstra a exegese bíblica, através da crítica textual, que os autores das cópias dos evangelhos que nos chegaram após dois mil anos, são de fato judeus helenizados, então partimos do princípio de que a crença no abandono de Yaweh é fato para muitos estudiosos; todavia, se foi ou não pronunciada por Jesus na hora da morte, ainda é por demais insuficiente negar ou confirmar tal passagem.
Sendo assim, não é objetivo deste artigo procurar provar esta ou aquela verdade, mas sim, buscar, antes de tudo, fazer análise, com fins de promover uma compreensão do contexto em que esses textos foram construídos. Do contrário, se pode incorrer em repetir erros de interpretação que se multiplicaram por séculos; os mesmos equívocos que visavam garantir a “boa fé”, mas que acabaram por afastar o entendimento acerca de quem foi o Homem de Nazaré e de sua desafiadora mensagem de vida.
Bibliografia
1 – CHOURAQUI, A. A Bíblia – Marcos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1998.
2 – Tora – A lei de Moisés. São Paulo: Editora Sêfer, 2001.
3 – FOUCALT, M. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
4 – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
5 – Apócrifos- Os Proscritos da Bíblia, vol.II. São Paulo: Editora Mercuryo, 2001.